Recebi, ontem, com tristeza, a notícia da morte da amiga Ana Paula Crosara de Resende. Por que partem, tão prematuramente, amigos queridos? Partem sem avisar, sem se despedir e nos deixam órfãos e perplexos, aturdidos com a dureza da separação. Ana Paula era uma amiga querida, uma grande aliada do movimento pela audiodescrição no Brasil.
Natural de Uberlândia, atuava como professora de cursos de extensão e especialização, como advogada e como radialista com o programa semanal “De Igual para Igual” na Rádio Universitária da Universidade Federal de Uberlândia. Ela era bacharel em Direito, com Mestrado em Geografia, os dois títulos pela Universidade Federal de Uberlândia. Sua luta pelos direitos das pessoas com deficiência conduziram-na até Brasília, onde ocupava um alto cargo na Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República. Era Diretora de Políticas Temáticas da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
Foi em 2008, quando estávamos ansiosos aguardando a implementação da audiodescrição na televisão brasileira, que recebi um telefonema da Ana Paula, com indicação do Paulo Romeu, convidando-me a dar uma entrevista em seu programa semanal de rádio. Ela queria colaborar na divulgação da audiodescrição, esclarecendo os ouvintes de seu programa sobre a relevância e importância do recurso. Além disso, sua atuação como advogada foi fundamental na elaboração de documentos que foram encaminhados para o Ministério Público, ABERT e Ministério das Comunicações na época dos infinitos adiamentos, consultas públicas, reuniões em Brasília.
Alguns meses depois, tive a oportunidade de encontrá-la e de conhecê-la pessoalmente, no Encontro dos Países Lusófonos, que discutiu os direitos das pessoas com deficiência, em Santos. Seu cabelo bem vermelho, seu largo sorriso e sua simpatia contagiante chamaram minha atenção. Conversamos como se já nos conhecêssemos há tempos…
Continuamos a nos falar por email, por telefone, a nos encontrar em congressos e seminários, a almoçar juntas em minhas idas à Brasília, sempre acompanhando de perto os avanços, as conquistas, a necessidade premente de implementação do recurso na televisão brasileira. Foi com sua valiosa colaboração e articulação que, finalmente, em 2011, a audiodescrição tornou-se uma realidade na televisão brasileira. E incansável, ainda queria mais. Queria que o número de horas de programação audiodescrita pudesse aumentar antes do prazo estipulado por lei.
Você foi, querida Ana Paula, nossa grande incentivadora e aliada. Quero deixar registrado aqui o meu, o nosso agradecimento pela sua amizade, participação e colaboração no avanço do movimento pela audiodescrição no Brasil. Você partiu, mas ficaram seus textos, seus artigos, seus livros que permitirão que sua presença, alegria e luta continuem presentes entre nós. E é um desses artigos, publicado em fevereiro de 2008, no site Bengala Legal: “APARTHEID CONTRA A PESSOA COM DEFICIÊNCIA”, que reproduzo abaixo, um presente para os leitores do blog VER COM PALAVRAS:
“Vivemos em um mundo onde muito se fala sobre Direitos Humanos, mas o desrespeito permanece em pauta para muitos dos humanos. Na maioria das vezes, no imaginário coletivo, quando se fala em direitos humanos associamos com cadeias lotadas, práticas cruéis e de tortura para presos. Ocorre que, existem várias pessoas que, apesar de serem gente, da mesma espécie científica dos homo sapiens, parecem invisíveis e não são facilmente associadas às questões que envolvem direitos humanos.
Estou falando das pessoas com deficiência, que em muitos casos não cometeram nenhum crime e que ainda pagam impostos, mas são excluídas da possibilidade de usufruir de direitos humanos básicos, simplesmente por conviverem diariamente com uma deficiência que receberam de “presente da vida”.
Importante esclarecer que a deficiência dessas pessoas é só mais uma característica dentre as várias que todo mundo possui, mas comumente é representativa dessas pessoas, como se a pessoa fosse sua deficiência, o que é um absurdo! Muitos dos meus leitores vão dizer que não, que as pessoas com deficiência também são sujeitos de direitos, inclusive os humanos e universais, e que a legislação brasileira e até a nossa Constituição não fala em diferentes níveis de cidadania.
Tudo muito lindo até aparecer uma pessoa com deficiência no mundo real e que queira estudar na sua escola, ler os livros que você publicou, trabalhar na sua empresa, divertir-se no seu estabelecimento de lazer, até mesmo freqüentar a sua igreja, assistir a um casamento ou fazer uma visita à sua casa ou local de trabalho.
O pânico aumenta se essa pessoa se recusar a ser carregada ou se simplesmente apontar que o problema é a escada, a falta de livro no formato acessível, a ausência de audiodescrição na propaganda linda que você colocou na televisão, ou a falta de acessibilidade virtual no sítio da sua empresa. Bom, a sua casa estaria resguardada não fosse aquela vontade incontrolável de sua visita que, depois de uns aperitivos precisa, como toda pessoa, usar o banheiro.
E agora? Você não sabia e não foi informado/a que em uma porta de 60 centímetros não passa uma cadeira de rodas?
Você não tem obrigação de saber que o livro impresso não atende todas as necessidades de todos os leitores e que isso pode ser considerado, pelo código do consumidor, um defeito? E você que é o responsável pela igreja esqueceu que a porta lateral – aquela onde tem a rampa exigida pela Prefeitura – precisava estar aberta? Será que pedir desculpas vai adiantar alguma coisa ou só vai piorar a raiva pela exclusão tácita que a pessoa está sentindo?
Você não tem obrigação de saber que o livro impresso não atende todas as necessidades de todos os leitores e que isso pode ser considerado, pelo código do consumidor, um defeito? E você que é o responsável pela igreja esqueceu que a porta lateral – aquela onde tem a rampa exigida pela Prefeitura – precisava estar aberta? Será que pedir desculpas vai adiantar alguma coisa ou só vai piorar a raiva pela exclusão tácita que a pessoa está sentindo?
A escola não pode recusar a matrícula porque é crime, mas ela cria tanta confusão na hora em que é informada sobre a deficiência da criança que muitos pais preferem não expor seus filhos a tamanha discriminação.
É por isso que afirmamos que vivemos num APARTHEID silencioso contra as pessoas com deficiência.
É por isso que afirmamos que vivemos num APARTHEID silencioso contra as pessoas com deficiência.
Ninguém diz que não se pode entrar na igreja, só que a porta, quando existe, está trancada e ninguém tem a chave e ainda pior, ninguém pensa em como abrir a porta, mas em como se livrar daquela pessoa com deficiência ou em como evitar a presença dela para não mostrar a incoerência entre o discurso e a prática.
Naquele momento o problema é a presença da pessoa com deficiência e simplesmente é bastante complexo para a pessoa, nessas situações de “crises”, que só quer participar mostrar que o problema é a falta de acessibilidade ou o desrespeito aos direitos daquele ser humano ali diante de você.
E no imaginário coletivo e na vida real vamos criando mais e mais barreiras para separar essas pessoas do nosso convívio.
E no imaginário coletivo e na vida real vamos criando mais e mais barreiras para separar essas pessoas do nosso convívio.
Transporte acessível? Só especial e separado porque não podemos imaginar que uma pessoa queira sair de sua casa e viver… E por falar nisso, quando encontramos alguém com deficiência que está aí no mesmo lugar que você, batalhando por sua independência como a maior parte dos brasileiros e das brasileiras, logo rotulamos – EXEMPLO DE VIDA, não queremos saber de fato o que ela faz, mas para segregar colocamos em outra categoria dos que devem ser admirados… Porque assim fica mais fácil deixá-los longe de nosso convívio.
Mas ainda nos resta uma esperança que a Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, primeiro Tratado Internacional de Direitos Humanos, elaborada pela ONU e com caráter vinculante, seja ratificada pelo Brasil, com quorum qualificado para dar visibilidade a 14,5% da população, de acordo com o Censo Demográfico do IBGE de 2000 para que possa ser usada como arma de enfrentamento mundial desse terrível APARTHEID silencioso e que você pode contribuir e muito para sua manutenção se continuar omisso e fazendo de conta que não vê tudo o que disse acima. Por isso e muito mais, queremos que essa Convenção seja rotulada como a Convenção contra o APARTHEID das pessoas com deficiência.” (Ana Paula Crosara de Resende – advogada, membro do Centro de Vida Independente Araci Nallin, professora de acessibilidade e inclusão social da Universidade de Uberaba).
Foto arquivo Liliane Garcez.
Por Lívia Motta – em 08 de junho 2012.
Por tudo que vc escreveu, Li, realmente, a Ana Paula vai fazer muita falta….Mesmo sem conhecê-la, fiquei pesarosa com sua morte. Com vc disse ela ela foi uma pessoa importante para o desenrolar do programa do deficiente. Ainda teria muito a acrescentar….Ela deve estar ajudando e participando de onde estiver!
Inês
Uma pessoa muito especial, Inês. Sempre alegre, batalhadora e super engajada nas lutas pelas pessoas com deficiência. A audiodescrição avançou bastante no Brasil graças ao esforço pessoal dela. Beijo grande.
Infelizmente, eu não tive o prazer de conhecê-la pessoalmente, mas sei de sua luta e dedicação pela causa da acessibilidade. Desta forma, sinto muito pela perda dessa pessoa tão querida e inspiradora.
Muito obrigada pela visita ao VER COM PALAVRAS, Eliana! A Ana Paula foi, sem dúvida, muito importante para a audiodescrição. Seus esforços e envolvimento com a causa deram bons frutos e sei que ela continuava incansavelmente ainda batalhando pelo aumento do número de horas e outras ações para divulgação maior do recurso. Sentiremos falta da amiga. Um abraço grande.